“Versos não se escrevem para leitura de olhos mudos” [Mario Quintana]

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

O Poeta do Mês

 

  Alexei Bueno



TROTTOIR
 
Os homens vão e vêm na íris das putas
E nenhum pára.
Nenhum ouve suas vozes dissolutas
Nem as encara.

São inúteis as frases mais argutas
Ou sobre a cara
A tinta, o pó. E a vida, quantas lutas,
Como está cara!

Ao longe os filhos, os filhos das putas
Com ladrões, ou pinguços, ou recrutas,
Na noite avara

Dormem cingindo palhaços birutas,
Bonecas louras relesmente hirsutas
Que a lua aclara.




NOTURNO


Sobre os seus saltos, sob a lua cheia,
Os travestis desfilam como garças,
Farsa carnal em meio às outras farsas
Que o mundo absurdo no aéreo chão semeia.

São deusas-mães usando liga e meia,
De ancas imensas, madeixas esparsas,
De enormes seios, piscando aos comparsas,
Buscando otários para a escusa teia.

São Vênus neolíticas chamando
Sombras confusas, entre os cães sem casa
E os negros ébrios. Seu barroco bando

Volveu, pulsante, dos tetos das grutas,
E anda na névoa, como numa vasa,
Rotundas popas balouçando enxutas.





LÁZARO
 
Cobrimos o mendigo que dormia
Com jornais, os jornais do extinto dia.

De fora só ficaram os sapatos
Cambaios, já roídos pelos ratos.

Acendemos então, junto, uma vela
E arengamos na luz branca e amarela.

Um círculo de povo já envolvia
Nosso pranto, e o pinguço nem tremia.

Volveu por fim do reino dos defuntos.
Debandada! E ele riu. Ríamos juntos.




GLÓRIA

[Lautréamont em Cantos de Maldoror]
Bêbado, às duas da manhã,
Parei na loja de ovos e aves.
Subi na grade e, em grande afã,
Cacarejei, de ecoar nas traves.

Os galos todos acordaram
Cheios de brio e, num só coro,
Com seu cacarejo enfrentaram
O meu, mais forte, mais sonoro.

Saltavam todas as galinhas.
Penas voavam loja afora.
Ligavam luzes nas vizinhas
Casas. Parti. Criara a aurora.
 

FAIT DIVERS

Carlinhos, o segurança,
O terror da Mem de Sá,
Trocou tiros num mafuá
Com o Fuinha, em plena dança.

O Fuinha perdeu a perna.
Depois morreu, no hospital.
O membro encaixou bem mal
No corpo, o que até consterna.

Carlinhos, pior que o Fuinha,
Pagou na hora o seu erro.
Três tiros. No seu enterro
Só foi a sua mãezinha.




I. M. L.

Na porta do boteco
Com flores de coroas
Que oferta às moças boas
Ele ergue o seu caneco

De alumínio gravado
Com o escudo do seu time,
E conta o último crime,
E olha o bordel fechado.

Sorrindo, no balcão,
Beberica e, prudente,
Fita a vaga onde, em frente,
Deixou o rabecão.

Então, se há um que lhe peça
Que lembre do seu carro,
Diz, dando um grosso escarro:
_ Defunto não tem pressa.




LAPA


Nesta casa antiga,
Sob estas volutas,
Como ri com as putas
Entre uma e outra briga.

Como virei copos
E extingui charutos,
Discuti com brutos,
Vaiei misantropos.

Urinei nas pias,
Vomitei nas portas,
Com passadas tortas
Vi nascer os dias.

Velha, velha casa,
Como ainda és a mesma.
(Não tens dentro a lesma
Que nos funda e abrasa.)


OCASO


Os velhos travestis estão cansados.
Suas custosas curvas se enrijecem.
No queixo a barba surge. Os seios descem
Assimetricamente orientados.

Nos braços delicados crescem músculos,
No lugar da peruca a calva aponta,
Todo o tórax se alarga, estranha afronta
Aos ombros ontem frágeis e minúsculos.

E, enfim cientes do tempo e seus esbulhos,
Dúbios, nas filas dos supermercados,
Ei-los que vão, duas vezes destronados,
Rumo ao fim, femininamente hercúleos.

Alexei Bueno está entre os melhores poetas da nossa literatura contemporânea. Profundamente impregnado de uma espécie de neo-helenismo, consegue fazer, graças a um excepcional domínio das formas poética, com que essa característica não soe como uma realidade extemporânea, mero culto ao exotismo, à nostalgia ou ao passadismo. A Grécia não é, para Alexei, uma província ancorada no passado, mas um modo de olhar e sentir a realidade em que está imerso, a nossa. Não é acúmulo, tradição museológica, mas o lugar em que se produz poiesis.

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