“Versos não se escrevem para leitura de olhos mudos” [Mario Quintana]

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

 
muito para não dizer  
Autor(a) sonia regina



quem se procura flor não se encontra além das pétalas.
ao desconhecer o sentido do dia cabendo inteiro na noite cálida
teme principiar a posteridade
e por um hálito além do lamento senta-se no freio da vontade
sobrevive caído numa existência estática
cedido aos pesadelos que abarrotam as calçadas dos vícios do medo.
melhor seria desbastar as escaras do tempo para deixar livres os espaços
onde não há nada, há muito para não dizer
ou para fazer

sonia Regina:Simplesmente soreg, ou SR: é como a escritora e poeta carioca Sonia Regina assina seus trabalhos de arte digital, ou publica e assina comentários no Portal Literal - respectivamente.
Exerce a psicologia para o Estado do Rio de Janeiro, tendo sido licenciada pela PUC/RJ e pós-graduada pelo Instituto de Psiquiatria/UFRJ.
Na web é editora de uma revista, um periódico, um blog e um site literários, onde publica novos autores e divulga a literatura mundial através de composições que aliam a palavra à imagem. Tem dois blogs pessoais, um exclusivamente da prosa que escreve.
Prefaciou 10 Rostos da Poesia Lusófona, coletânea de poemas de autores brasileiros e portugueses. Organização: Fernando Oliveira. São Paulo: All Print Editora, 2008; escreveu a Nota Introdutória da Antologia Poética Amante das Leituras - Portugal: Amante das Leituras Edições, 2009 e prefaciou o livro de Conto e Poesia de Jorge Xerxes: As Cinquenta Primeiras Criaturas. Rio de Janeiro: Multifoco, 2010.
Publicou um livro bilíngue de poemas: Uitzilim. Rio de Janeiro: Letra&Cia, 2003. Participou de várias antologias, no Brasil e em Portugal. Integra os grupos de criação e discussão literária Utopoesia (Argentina), Amante das Leituras (Portugal) e Encontro de Escritas (Portugal), em cujas antologias consta.



TRAVESSIA 
  
Autor(a) Betusko
Vinha vindo de longe 
pó da estrada sobre os sapatos 
muitos sons vigiando seu cérebro 
que revive a cena: 

De um lado, estouro de búfalos 
com fundo de acordeão 
e nuvens de Alka-seltzers 
em uma banheira de ônix. 

De outro lado 
um velho de barbas longas 
pitando seu cigarrinho de palha 
com dedos mágicos de pescador 

Vinha chegando de longe 
mas acho que falta um pouco
ele ainda não voltou totalmente
falta a faísca dos neurônios cansados.


Meu nome é Roberto Lopes Jesus,tenho grudado na porta da minha geladeira: um diploma amarelado de Lingua e Literatura da USP, um certificado de corretor de seguros, algumas contas para pagar e uma receita de Paella para o fim de semana... y la vida sigue su camino.



Três revelações na primeira quarta-feira de dezembro
Parte I: a face de Deus (Eu sou o que sou)


Para quem, como eu, sempre manteve acesa curiosidade pelos assuntos celestes, a primeira quarta-feira de dezembro foi um dia de revelações.
Logo pela manhã, quando nem bem havia terminado com a manteiga no pão, já me dispus em luto em nome da voz do insofismável Lombardi; sim, aquela mesma, das tardes de domingo do Sílvio: – É com você Lombardi. – Pois não, Patrão...
Confesso que sofri um bocado com a notícia, afinal, aquela voz sempre soou como uma trilha sonora da minha infância: era eu, menino, a brincar pelo chão da sala, era minha avó, novamente menina, a tricotar pelo sofá e era o Lombardi, escondido na televisão, a nos espionar. O que explica todo este meu receio, afinal, em última instância, o desaparecimento daquela voz representa, de algum modo, a dissipação de parte da minha infância.
Além do mais, sempre achei que se fosse o caso de Deus possuir alguma voz, ela deveria ser igualzinha à do Lombardi: o mesmo timbre, a mesma afinação, o mesmo poder de chocar a atenção dos ouvidos e, sobretudo, a mesma face misteriosa. Talvez por isso, nunca me tenha sido possível impedir – malgrado meus esforços – que as mãos executassem o sinal da cruz, todas as vezes que sua voz me apanhava desprevenido.
Durante décadas, acreditei que o Lombardi tinha a mesma cara de sua voz, ou que nele, ambas, cara e voz, constituíssem uma e mesma coisa. Mas, como já lhes disse, o dia foi mesmo de revelações, pois, para bem ou para mal, a notícia fúnebre da morte de sua voz trouxe consigo a expressão de um semblante. Não me avisassem e nunca imaginaria que o rosto estampado nos jornais tinha como dona a voz do Lombardi; para ser sincero, ainda agora me custa um pouco ligar a cara à voz; e digo mais, não vai ser tarefa nada fácil – senão impossível – vincular aquela fisionomia, que sempre me aparecerá estranha, à intimidade de meus mais tenros anos. Pudesse eu escolher e, certamente, optaria por um enterro menos imagético e mais sonoro para o pobre do Lombardi, alguma coisa mais adequada para quem somente existiu na freqüência de suas cordas vocais, algo semelhante à impressão de um simples abaixar do volume.
Mas, se a morte resolveu interpor uma imagem entre nós e a voz do Lombardi, ao menos é possível agarrar o lado bom da coisa, pois, se, realmente, for o caso de qualquer semelhança entre sua voz e a voz de Deus, isso significa que, de agora em diante, talvez estejamos mais perto de conhecermos os traços de nossa criação.


Borboleta é a assinatura literária de Fábio Amorim de Matos Júnior.
Doutorando em filosofia, Fábio Amorim atua como professor universitário.
Borboleta, por sua vez, é escritor independente, acaba de publicar seu primeiro livro de contos – “Pára-raio de Loucos” – e mantém vivo um sítio sobre literatura e outras coisitas mais:


A FLOR  

Autor(a) Parreira
Um dia ele criou um sol em seu quarto. E era tão perfeito e vibrante o sol que ele se sentiu animado a criar outras coisas. Veio daí uma lua, que era igualmente perfeita e redonda. Criou também um carro novo, porque era necessário. E depois disso tudo, para alegrar um pouco o ambiente, criou uma flor, uma solitária flor dentro de um vaso.
Tempos depois, cansado do confinamento, o sol criado se apagou. A lua, sentindo-se só, também se foi. O carro se convenceu que o mundo era grande demais, e resolveu rodar, rodar e rodar. Restaram só ele e a flor, criador e criatura.
Mas o homem, como é natural, um dia também resolveu partir. A flor, sozinha, não teve outra alternativa: criou novamente um homem para ser por ele criada, mais uma vez.

Claudio Parreira é escritor , chargista e vigarista. Foi colaborador da Revista Bundas, do jornal O Pasquim 21, Caros Amigos on line, Agência Carta Maior, entre outras publicações. Teve contos incluídos nas antologias CONTOS DE ALGIBEIRA, da Editora Casa Verde, FIAT VOLUNTAS TUA, antologia editada pela Multifoco e também DIMENSÕES.BR, da Editora Andross. É colunista de O Bule.

O peso da gravidade 



Autor(a) fernando oliveira
Apalpei a terra em todos os recantos
E ela era dura.
Deslizei em mares e rios
E eles eram duros.
Olhei para um espelho
E ele era oco.
Por detrás de mim
Camponeses moldavam a terra
Pescadores colhiam nas águas.
Uma borboleta pousou nos meus ombros
E ela era leve.


Fernando Oliveira: nasceu para os lados de Portugal em 1945, fez jornalismo desportivo enquanto jovem na Oceânia, colaborou em jornais culturais na mesma região. É poeta e tradutor literário para e de o francês, inicia-se neste momento na tradução de poetas hispânicos. Tem actualmente um livro de poesia editado em Paris, não pensa editar mais. Editou duas obras colectivas nas Bienais de S. Paulo e Rio de Janeiro e duas outras em Lisboa.
Tem vivido entre Paris, Rio de Janeiro e Lisboa. Tem cinco assinaturas - pseudónimos - para os seus trabalhos: Ferool, Montefrio, Antanho Esteve Calado, Theófilo de Amarante e Fernando Oliveira.

Na face uma lágrima
Autor(a) Graça Filadelfo


Bem cedo ela já está no ponto. Todo dia é assim na vida de Cremilda. Salta da cama antes do galo cantar, lá pelas bandas de Periperi, Subúrbio Ferroviário de Salvador. Precisa pegar o ônibus logo para não chegar atrasada ao trabalho, às sete.

Então o ritual é rápido. Água no rosto, alguns goles de café, a roupa surrada. Sem um beijo no filho de nove meses, sai às pressas, quase voando, para não perder o ônibus que deixa o bairro às seis. Por sorte acha um lugar para sentar.

Cinco minutos depois, o velho coletivo dá a partida. Saculeja pra lá, saculeja prá cá. Nesse embalo, Cremilda cochila. É um jeito de compensar a noide mal dormida, cheia de preocupações com o marido, desempregado, e o fututo do bebê. Até a Graça, endereço do trabalho, a viagem dura geralmente quase uma hora.

Nunca a doméstica chega depois da hora combinada. Porém naquela última quinta-feira de agosto não dá para marcar o ponto. Ainda na Suburbana, o pneu traseiro direito do ônibus fura. E o motorista põe o pé no freio. A doméstica, que sonhava amamentando o filho, acorda assustada e se dá conta da situação.

O socorro mecânico demora e Cremilda se transforma no próprio desespero. "Vou levar bronca. Dona Emília não vai acreditar que o pneu do ônibus furou", pensa alto a jovem, 29 anos, morando de aluguel numa casa de apenas três cômodos. Tenta usar o celular, mas o aparelho está descarregado. Pede emprestado o da vizinha de cadeira, mas não tem crédito.

Só às sete e cinquenta o pneu é trocado e o "buzu" retoma a viagem. Às oito e meia, finalmente, buzina no apartamento do 15º andar. Não tem ninguém na casa da patroa. No outro dia, ao chegar pontualmente às sete conta a história. É demitida. Na face uma lágrima...
GRAÇA FILADELFO-Jornalista, com especialização em Gramática e Texto, primo pela ética no exercício da minha atividade profssional. Admiro um bom texto, aquele que desperta o interesse pela leitura, do princípio ao fim. Gosto de incentivar a produção textual para que as pessoas percam o receio de escrever. Também sou atenta e sensível ao que acontece no dia-a-dia. Por isso criei os blogs Bahia Aqui e Ali e Boa Escrita.



Anatomia entre dois saltos  

Autor(a) Jorge Xerxes
O gato branco salta silencioso sobre a cadeira.
Observa profundamente os meus olhos
com aqueles OlhOs seus:
um verde e outro azul.
Depois ele deixa-se ir.
Lento,
sem medo,
como se nunca estivesse ali.
A cadeira ainda guarda o calor de seu corpo felídeo.
Sua arte do desvanecer.
A liberdade dele me diz muito:
da preguiça,
da coisa toda de não fazer,
do lamber-se cuidadoso e asseado.
Alvas felpas,
garras retráteis
e a cauda sinuosa.
Nada falam do que não foi.
Não se ocupam em espreitar o futuro
ou arrepender-se do que passou.
Fluem íntegras através do agora.
Vazam líquidas num caminhar sólido,
firme,
de um passo quieto e magro
de quem absorve a maciez do chão
e lhe devolve o salto em dobro.
JORGE XERXES Pisciano; nascido no ano de 1971.
Natural de São João da Boa Vista, SP; "cresci ao pé da serra da Mantiqueira; por entre trilhas e cachoeiras; sempre em rota de colisão àquele verde inconcebível".
Estudou por pouco mais de dez anos na Unicamp; "tinha o meu próprio ritmo de assimilar as coisas" diz com um sorriso enigmático no canto da boca.
Interessa-se por tudo aquilo que nos passa despercebido; "gosto de escrever sobre as coisas pequenas".Mantém o website "Palavras Órfãs de Poesia: O que Restou"


MAPALU - Patrícia Amorim
Autor(a) Me vi escrevendo 


Foi assim: meu pai, pescador por instinto, construiu um barco tão grande que cabia o céu, as estrelas e o infinito. Olhei aquele gigante branco com nome de gente: Ma-pa-lu, iniciais de Márcia, Patrícia e Lucia. Era uma família inteira dentro de um barco de madeira. Barco pra peixe grande: de salmão a cação, de cavala a pescada, todos de boca aberta pra virar refeição. Era barco de respeito, todo cromado, que só seria governado por um capitão e seu imediato.
Nas ondas do mar naveguei com meu pai sempre ao lado. De sua boca saia tanta sabedoria que ficava arrepiada. Virei sua maruja, sua mais fiel coruja. Tomava conta das noites e dos dias de calor, sempre atenta as suas mudanças de humor. Seja humilde, seja humilde, porque sou bem maior – o mar me soprava em cada onda que passava.
Bombordo é o lado do coração e boreste o lado da razão. A proa é como um bebê que começa a andar: sempre para frente ; já a popa é o lugar do medo, quando recuamos, andamos para trás, lá atrás. Uma milha náutica equivale a 1,85 quilômetro. A velocidade dos ventos é dada em nós, medida equivalente à milhas náuticas por hora. Agora responda: 25 nós representa quantos quilômetros por hora? Corria para o papel e respondia: 46 km/h?
Ninguém haverá de encontrar maruja mais esperta como essa!, meu pai dizia.
Havia relatórios regulares de longitude e latitude, tudo muito complicado, mas não para minha cabeça fresca, sempre atenta a todos os cuidados. Vislumbrei, durante anos, as mais belas criaturas que o mar poderia gerar. Voei com as gaivotas, mergulhei com as baleias, balancei com a ventania. Meu pai era o meu capitão, meu timão, meu ar, e acima de tudo, o homem que me apresentara ao mar.
À medida que avançávamos, meu pai se viu obrigado a recrutar pescadores: homens fortes com a pele tão grossa como um casco de uma tartaruga idosa. E, de repente, virei a mascote, a que tinha que ser protegida e alimentada, posição que amargurava calada. E, de repente, virei menina-mulher e já não podia mais andar de biquíni e nem à vontade perto dos olhos dos pescadores de short. Passaram a me olhar vagarosamente, debilmente, como algo novo, com vários contornos.
Vi meu pai partir e eu ali: culpando meu corpo que não estava nem aí. Não podia mais me expor aos olhos do homem-pescador.
Foi difícil aceitar a condição de maruja aposentada, fui exilada da fonte que levava e trazia meus sonhos. Fiquei inconsolável, até o dia em que um rapaz passou por mim despertando um interesse amável. Meu pai deu chilique, não gostou, mas só assim ficamos quites.
 Foi assim.




“Il y a les vivantes, les morts et le marins”
(existem os vivos, os mortos e os marinheiros)
Victor Hugo
PATRÍCIA AMORIM-Tenho como ofício a formação em Direito e, como paixão, os livros, o mar e a dança flamenca. Nos momentos de aflição rabisco pensamentos e opiniões sem a menor intenção de que sejam apreciados; fazem parte apenas das horas de lucidez - ou insensatez.
Dizer  

 

 

Pedro Du Bois.
[inédito]



Se disserem para se diferenciar
ao tocar as flores, recomende
.............................ao aviso,
.............................cautela:

flores se fazem
descompromissadas
e ao toque
despetalam
vidas inacabadas

o talo permanece
com os pés dentro d’água.
Pedro Du Bois, poeta e contista. Passo Fundo, RS, 1947, residente em Itapema,SC. Vencedor do 4º Prêmio Literário Livraria Asabeça, SP, com o livro "Os Objetos e as Coisas".
Editor-autor, com diversos títulos publicados artesanalmente, em tiragens mínimas, não comercializáveis. Textos publicados em diversos sites e blogs de literatura.
Teve publicado, em 2009, o livro "A Criação Estética", poemas, pela Corpos Editora, Portugal.

Ciranda de luz  
Autor(a) Robertson Rébula 
Súbita interferência no negro,
riscos lumínicos tranversais
explodem no espaço vazio.
Os vértices de velozes fractais
ferem a quietude do nada negro;
o branco jorra em leitoso passeio
o véu sobre a ciranda de luz.

Uma assembleia vermelha
de corpúsculos abraçados,
saltiltam frenéticos,
sobre o negro nada negro.
Fugazes vermelhos dançantes,
enevoados pelo branco véu.
Fugazes vermelhos dançantes,
enevoados pelo branco...
Fugazes vermelhos dançantes...
Fugazes vermelhos...
Fugazes...


Cortesãs  
Autor(a) Thabata Lima Arruda 
Nudez angelical essa sua.
Mistura-se com a minha na penumbra.
Mão, boca, língua, pele manchada pelo carmim.
Nossos pejos encobertos vulgarizavam um
(im) possível amor.
Era apenas uma noite, uma cama.
Apenas duas cortesãs e um sexo.
E para a corte sã um (im) possível amor.


A consciência  

 

Autor(a) Paola Rhoden
A Consciência é um mistério?


Consciência é a parte da mente humana que traz o conhecimento de se estar sabendo de algo, ou que dá a certeza de que alguma coisa existe no mundo objetivo, inclusive nós mesmos.

Para alguns, ter consciência de é saber que o fenômeno está lá, seja este qual for. Desde Descartes (Penso, logo existo) até Damásio a mente humana foi dissecada de diversas formas, mas ainda não se tem conclusões científicas definitivas sobre o assunto.

Por isso existe ainda muito que se pesquisar sobre a mente do homem. A neurociência engatinha pelos meandros do pensamento humano, procurando revelar cientificamente o que se passa pelo cérebro em função da dor, tristeza, alegria, amor, entre outros fatores abstratos da vida.

Mas, para o ser humano, estar consciente (com + ciência) é saber dos fatos. E isto tudo se passa unicamente no cérebro, com conhecimento apenas de quem está pensando.

Podemos dizer que a Consciência vem da necessidade de nos mantermos respirando.

Para quem vive em um sistema complexo de imaginação, criatividade e planejamento da vida, ser consciente é primordial. É isto que nos diferencia de uma máquina, ou um robô. É isso que nos dá a certeza de que somos algo mais no contexto da vida.

A Consciência no sentido Místico nos faz perceber o que somos junto ao Universo, e o que fazemos para melhoria das coisas e de nós mesmos. Porque Consciência também implica em se fazer justiça, ter a sabedoria de utilizar a mente para o bem, ou em não prejudicar ninguém.

Estar consciente é saber que existimos e que Deus também existe.

PAOLA RHODEN
Nascida na cidade de Guarapuava no Estado do Paraná, Brasil. Hoje reside em Brasília. Escreve desde criança. Paola tem mais de quinhentos textos escritos, diversos destes publicados em  antologias. Tem dezesseis livros prontos, e centenas de contos, crônicas e poesias disponíveis em sites de literatura. Participa do programa do "Department of Modern Languages and Literatures University of Miami-Flórida" desde 2008. Membro correspondente da Academia Cachoeirense de Letras desde 2006. Membro da Câmara Baiana do Livro. Membro da REBRA - Rede de Escritoras Brasileiras.



A PRIMEIRA RUA DE UM SONHO
Autor(a) Noélio A. de Mello

A noite dos anos nos obriga muitas vezes a não pensar em certos detalhes da vida que algumas almas atentas, felizmente, não deixam que nossos corações insensatos, distraídos, façam cair no esquecimento humano. Ganhei esta semana de uma amiga, de olhos sensíveis, delicados e acesos como faróis, uma fotografia da primeira Rua de Belém.

A Rua da Ladeira foi a artéria inicial por onde começou a pulsar e correr o sangue quente e apaixonante da nossa cidade. Como se fosse uma criança perdida na selva da vida começava, assim, a dar seus primeiros passos em busca do desconhecido, do que ainda era fantástico, invisível.

Rasgada na floresta pelas mãos dos colonizadores portugueses que aportaram por aqui, talvez por um acaso do destino, no século XVI e que abriram no meio do verde o primeiro olhar para plantar no solo fértil e úmido de uma nova terra o coração de uma cidade que, hoje, passados mais de quatrocentos anos, continua batendo cada vez mais forte contando histórias que nunca se perderam no tempo sobre a mais européia das capitais do nosso país.

Fico pensando no passado e imagino os primeiros amores maculando no meio das noites quentes a pureza das alcovas dos seus casarios construídos de pedra e cal e com fachadas bordadas com os mais belos azulejos de todas as cores e desenhos trazidos de Lisboa. Era uma nova paisagem que devia ficar a confundir os pássaros em suas revoadas vespertinas, belos como os arco-íris, e os olhos quase aflitos dos índios Tupinambás, assustados anfitriões, de almas puras de civilização, sentindo que do meio da floresta encantada já se misturava aos ventos o aroma do inicio de uma nova, poética e extensa vida.

Os primeiros amantes de Belém, brancos como o leite, vindos nas caravelas coloridas saídas de Portugal, enquanto faziam caricias nas suas carnes delirantes, recebiam as primeiras brisas mágicas da Baia do Guajará, quase um mar intenso e extenso de águas doces, amarelas e encrespadas, puras de civilização, que vinham lamber as pedras da nova rua, como se estivessem a ofertar um banho de boas vindas perfumado de ervas, cheias de segredos, de mistérios, para um lugar que muito tempo depois se tornaria a grande e bela porta de entrada da Amazônia.

Cidades e pessoas têm inicio de vidas semelhantes, ambas alimentadas por cordões umbilicais, um feito de barro e pedra nascidos do ventre da terra e o outro recheado da seiva da vida que nasce das divinas e abençoadas entranhas femininas. Isso é tão real, que por esse motivo homens e cidades nascem, vivem, se confundem e um dia se separam apenas no tempo e no espaço, incapazes, todavia, de contrariar a lei inexorável do andar da vida. Como são a terra e os céus.

A primeira Rua de uma cidade é como o primeiro amor, o primeiro beijo, a primeira relação dos amantes, jamais será esquecida porque é o inicio de uma existência, e existências e paixões jamais são esquecidas pelos corações sensíveis e pelo silencioso caminhar de suas almas. Eternas, encantadas, intimas, felizes, cúmplices.

A primeira Rua de Belém, cujas janelas se abriram para ouvir as primeiras serenatas, fez, durante um bom tempo, do andar térreo dos seus casarios uma selecionada quantidade de bares onde se reuniam artistas, poetas, músicos e onde as mesas colocadas nas suas calçadas iluminadas por pétalas de luar, eram recolhidas somente depois do primeiro traço de sol surgir atrás das árvores gigantes das ilhas que ficam de frente para a cidade, separadas das nossas almas, dos nossos olhos, pelas águas doces da Baia que cerca nossa cidade.

Antigamente passar uma noite na Rua da Ladeira era obrigatório que o prato principal das línguas que falavam e cantavam, contassem somente histórias de sedução, de paixões avassaladoras, de vidas felizes. Depois de ver o sol nascer, ainda dava tempo de alguém fazer uma jura, uma promessa, desde que fossem de amores delirantes, eternos, impetuosos, feiticeiros.

A modernidade, no entanto, fez a primeira rua ficar esquecida pelos homens noturnos e obrigou muitos corações apaixonados a falarem de amor em outros bares sob o teto estrelado de muitas noites imensas de saudades. Permanecem lá, todavia, os sonhos de um passado distante que contam sempre uma história velha, sempre nova, do começo da vida de uma cidade chamada abençoadamente de Belém do Pará.

NOÉLIO A. DE MELLO
Tenho duas filhas maravilhosas e um filho fascinante, que aos vinte e três anos foi chamado a conhecer as delicias do Reino de Deus. Como já era um anjo terreno, apenas se transformou num anjo celestial. Deixou-me com saudades incuráveis, mas com a certeza de um reencontro no Paraíso da Eternidade.
Dos dezoito aos vinte anos trabalhei como repórter num jornal local.Hoje tenho um coluna de crônicas no Jornal o Diário do Para, um dos maiores jornais do norte-nordeste do Brasil. Escrever é uma terapia para o meu espírito. Uma maneira de levar mensagens para tantos corações apaixonados ou sofridos, que estão sempre a contar histórias velhas sempre novas sobre as coisas da alma e do coração. Uma existência simples que aprendeu a não complicar a vida. Sem vaidades, deixo para o tempo a missão de realizar meus sonhos.
Para Deus, deixo a tarefa de apagar as feridas do meu espírito.

Obras publicadas:
Livro de crônicas ENTRE O RISO E O PRANTO. fevereiro de 2008. Editora Pakatatu;Próximo lançamento: A VIDA E O TEMPO.

Parabéns ao Grupo de letras et cetera, e obrigada pela partilha.
anamerij 

Nenhum comentário:

Postar um comentário