“Versos não se escrevem para leitura de olhos mudos” [Mario Quintana]

sábado, 1 de janeiro de 2011

 O Poeta do Mês
Ivan Junqueira


Tristeza






Esta noite eu durmo de tristeza.


(O sono que eu tinha morreu ontem


queimado pelo fogo de meu bem.)


O que há em mim é só tristeza,


uma tristeza úmida, que se infiltra


pelas paredes de meu corpo


e depois fica pingando devagar


como lágrima de olho escondido.






 (Ali, no canto apagado da sala,


meu sorriso é apenas um brinquedo


que a mãozinha da criança quebrou.)






E o resto é mesmo tristeza.






 Elegia Íntima






Minha mãe chorando no fundo da noite


rachou o silêncio do quarto adormecido.


Meu pai olhava o escuro e não dizia nada,


Um relógio preto gotejava barulho.






Lá fora o vento lambia as espáduas do céu.






Minha mãe chorando no fundo da noite


Apunhalou o sono de Deus.







 Madrigal






 Azul e pontual,


o céu acordou:


cada aurora


em seu horizonte.


Mas a pergunta,


Como um gládio


em riste, cravou


seu aço no vazio


— e lá, imóvel, ficou


esperando a resposta


que não raiou.






Hoje






 A sensação oca de que tudo acabou


o pânico impresso na face dos nervos


o solitário inverno da carne


a lágrima, a doce lágrima impossível...


e a chuva soluçando devagar


sobre o esqueleto tortuoso das árvores










Haicai



 Na gaiola jaz
 o pássaro
 sem espaço


 (de Opus Descontínuo)




O Poema






Que será o poema,


essa estranha trama


de penumbra e flama


que a boca blasfema?






 Que será, se há lama


 no que escreve a pena


 ou lhe aflora à cena


 o excesso de um drama?






 Que será o poema:


 uma voz que clama?


 Uma luz que emana?


 Ou a dor que algema?


  (de A Sagração dos Ossos)



   Talvez o vento saiba




Talvez o vento saiba dos meus passos,


das sendas que os meus pés já não abordam,


das ondas cujas cristas não transbordam


senão o sal que escorre dos meus braços.


As sereias que ouvi não mais acordam


à cálida pressão dos meus abraços,


e o que a infância teceu entre sargaços


as agulhas do tempo já não bordam.


Só vejo sobre a areia vagos traços


de tudo o que meus olhos mal recordam


e os dentes, por inúteis, não concordam


sequer em mastigar como bagaços.


Talvez se lembre o vento desses laços


que a dura mão de Deus fez em pedaços.




Esse punhado de ossos




Ivan Junqueira
A Moacyr Felix




        Esse punhado de ossos que, na areia,
        alveja e estala à luz do sol a pino
        moveu-se outrora, esguio e bailarino,
        como se move o sangue numa veia.
        Moveu-se em vão, talvez, porque o destino
        lhe foi hostil e, astuto, em sua teia
        bebeu-lhe o vinho e devorou-lhe à ceia
        o que havia de raro e de mais fino.
        Foram damas tais ossos, foram reis,
        e príncipes e bispos e donzelas,
        mas de todos a morte apenas fez
        a tábua rasa do asco e das mazelas.
        E ai, na areia anônima, eles moram.
        Ninguém os escuta. Os ossos choram.




[Dois poemas inéditos]


DOM QUIXOTE



Vai a passo Dom Quixote
em seu magro Rocinante.
Sancho Pança o segue a trote
pela Mancha calcinante.


Tudo é pedra, arbusto seco,
erva má, ermas masetas.
Não se escuta nem o eco
do vento a ranger nas gretas.


O que buscam o fidalgo
e o seu álacre escudeiro?
Peripécias, duelos, algo
que lhes recorde o cordeiro


quando abriu os sete selos
e fez soar as trombetas?
Buscam o quê? O que fê-los
ir tão longe em suas bestas?


Pois esse Alonso Quijano,
ao deixar a sua aldeia,
só buscava – áspero engano –
exumar o que, na teia


de suas tontas leituras,
eram duendes, hierofantes,
castelos, leões, armaduras,
dulcinéias, nigromantes


e uma Espanha onde a justiça,
há tanto um tíbio sol posto,
fosse um bem que só na liça
pudesse ser recomposto.


Mas do triste cavaleiro
era tanto o desatino
que na cuia de um barbeiro
vira o elmo de Mambrino,


nas ovelhas ao relento,
uma tropa de meliantes,
e nos moinhos de vento,
uns desgrenhados gigantes.


Dom Quixote nunca via
o que aos seus pares narrava,
pois que só lia e mais lia,
e ao ler é que se encantava.


E assim do texto as imagens
saltavam – bruscas centelhas –
no amarelo das paisagens,
no ocre encardido das telhas.


Foi quando então, claro e fundo,
percebeu que o que ia vendo
nada tinha com o mundo
sobre o qual andara lendo.




Ilusão e realidade,
heroísmo e covardia,
sensualismo e castidade,
prosa pedestre e poesia


– eis os pólos do conflito
que somente se harmoniza
no humor de um cáustico dito
que nos fustiga e eletriza.


E o que redime o manchego
não é tanto aquilo que ama,
e sim o dom de si mesmo
no amor que doa a uma dama,


sem nenhuma recompensa
que não seja a do fracasso
ou da estrita indiferença
de quem sequer viu-lhe um traço.


De fala mansa e discreta,
que ao calar é que se escuta,
seu percurso é a linha reta
entre o que tomba e o que luta.


Vai a passo Dom Quixote,
ya el pie en el estribo.
A morte agora é seu mote.
Vai a sós. Vai só consigo.


A IMORTALIDADE



O que é a imortalidade?
Um sopro que nos carrega
para os confins da orfandade,


onde o espírito se nega
e de si já não recorda
após a última entrega?


Que luz é a que nos acorda
quando a morte, em dada hora,
bate à porta e chega à borda


do ser que se vai embora,
mas crê que não vai de todo,
pois do invólucro que fora


algo fica em meio ao lodo
que lhe veste o corpo morto
com a púrpura do engodo?


E o que cabe ao que foi torto
e nunca exigiu conserto?
Irá chegar a algum porto?


Será que na alma um aperto
não lhe purgou a maldade
quando do fim se viu perto?




O que é a imortalidade?
Uma insígnia, uma medalha
com que se louva a vaidade?


Ou não será a mortalha
que te poupa só a cara
escanhoada a navalha?


Será talvez a mais rara
das obras que publicaste
ou da crítica a mais cara?


Será isto, já pensaste,
a herança em que se resume
o que aos amigos deixaste?


Esquece. Sente o perfume
de algo que se fez distante:
a mão de uma criança, o gume


de seu olhar penetrante
quando viu, no ermo do cais,
que o tempo que segue adiante


é o mesmo que volta atrás
e confunde a realidade,
e a desmantela, e a refaz.


É isto a imortalidade:
esse eterno e estranho rio
que corre em ti e te invade.


E o mais é só o pavio
de um lívido círio que arde
no insuportável vazio


que enche toda a tua tarde.




Sexto ocupante da Cadeira nº 37, eleito em 30 de março de 2000, na sucessão de João Cabral de Melo Neto e recebido em 7 de julho de 2000 pelo Acadêmico Eduardo Portella. Recebeu o Acadêmico Antonio Carlos Secchin.

Ivan Junqueira nasceu no Rio de Janeiro (RJ) em 3 de novembro de 1934. Aqui realizou seus primeiros estudos, ingressando em seguida nas faculdades de Medicina e de Filosofia da Universidade do Brasil, cujos cursos, porém, não chegou a concluir. Iniciou-se no jornalismo em 1963, como redator da Tribuna da Imprensa, tendo atuado depois no Correio da Manhã, Jornal do Brasil e O Globo, nos quais foi redator e sub-editor até 1987. Assessor de imprensa e depois diretor do Centro de Informações das Nações Unidas no Rio de Janeiro entre 1970 e 1977, tornou-se mais tarde supervisor editorial da Editora Expressão e Cultura e diretor do Núcleo Editorial da UERJ, além de colaborador da Enciclopédia Barsa, Encyclopaedia Britannica, Enciclopédia Delta Larousse, Enciclopédia do Século XX, Enciclopédia Mirador Internacional e Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, este último editado pelo CPDOC, da Fundação Getulio Vargas. Foi também assessor de Rubem Fonseca na Fundação Rio.


Como crítico literário e ensaísta, tem colaborado em todos os grandes jornais e revistas do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, bem como em publicações especializadas nacionais e estrangeiras, entre elas Colóquio Letras, Revista do Brasil, Senhor, Leitura e Iberomania. Em 1984 foi escolhido como a “Personalidade do Ano” pela UBE. Assessor da Fundação Nacional de Artes Cênicas (Fundacen) de 1987 a 1990, no ano seguinte transferiu-se para a Fundação Nacional de Arte (Funarte), onde foi editor da revista Piracema e chefe da Divisão de Texto da Coordenação de Edições, tendo se aposentado do serviço público em 1997. Foi ainda editor adjunto e depois editor executivo da revista Poesia Sempre, da Fundação Biblioteca Nacional (1993-2002).


Conferencista, realizou palestras no Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Fortaleza, Manaus, São Luís, Brasília, Recife, Porto Alegre, Passo Fundo, Florianópolis, Petrópolis, Buenos Aires, Santiago do Chile, Santiago de Compostela, Madri e Lisboa, onde, em 1994, abriu o Projeto Camões, patrocinado pelo Instituto Camões e a Fundação das Casas de Fronteira e Alorna, ocasião em que ministrou, na Biblioteca Nacional da capital portuguesa, o curso “A Rainha Arcaica: uma interpretação mítico-metafórica”, além de realizar recitais de poesia na Casa de Fernando Pessoa e no Palácio da Fronteira. No ano seguinte voltou a participar do Projeto Camões, tendo proferido conferências em Coimbra, Porto, Vila Real, Lisboa e Ponte de Sor. De 1995 a 1997 tomou parte no Projeto Ponte Poética Rio–São Paulo, de que constavam leituras comentadas de poemas de sua autoria e palestras. Ainda em 1995 recebeu da UFRJ, por unanimidade de votos, o diploma de “notório saber”, tendo ali participado também do ciclo de palestras “Os Poetas”. De 1996 a 1997 participou, como poeta e ensaísta, das “Rodas de Leitura” do CCBB e organizou, naquele último ano, com Moacyr Félix e Leonardo Fróes, as “Quintas de Poesia”, sob o patrocínio da Funarte. Em 1998 foi curador do Programa de Co-Edições da Fundação Biblioteca Nacional, que possibilitou a publicação de 35 títulos de autores das regiões Norte, Nordeste e Sudeste, onde, entre 2000 e 2003, realizou diversas conferências. Foi Tesoureiro (2001), Secretário-Geral (2002-03) e Presidente da ABL (2004-05).


Membro titular do PEN Club do Brasil, é sócio do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro e do Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro, além de sócio de honra da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, membro do Conselho Estadual de Cultura e Grande Benemérito do Real Gabinete Português de Leitura. Recebeu vários prêmios literários: Prêmio Nacional de Poesia, do INL (1981); Prêmio Assis Chateaubriand, da ABL (1985); Prêmio Nacional de Ensaísmo Literário, do INL (1985); Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (1991); Prêmio da Biblioteca Nacional (1992); Prêmio José Sarney de poesia inédita, do Memorial José Sarney (1994); Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro (1995 e 2005); Prêmio Luísa Cláudio de Sousa, do Pen Club do Brasil (1995); Prêmio Oliveira Lima, da UBE (1999); Prêmio Jorge de Lima, da UBE (2000); e Troféu Aimberê (Personalidade Intelectual do Ano), do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro (2004).  Em 1998 recebeu a Medalha Cruz e Souza, da municipalidade de Florianópolis, e, em 1999, a Medalha Paul Claudel, da UBE. Em 2002 foi o patrono do IV Concurso Nacional de Poesia Viva, patrocinado pelo jornal Poesia Viva. Recebeu ainda, em 2005, a Medalha Manuel Bandeira, da UBE (Seção de Pernambuco).


Em 23 de junho de 2005 participou em Paris da sessão conjunta da Academia Brasileira de Letras e da Académie Française, ocasião em que lhe foi concedida a Medalha de Richelieu, a mais alta condecoração daquela instituição. Representou o Brasil no Festival Mundial de Poesia, realizado em Santiago do Chile entre 18 e 24 de outubro de 2005. Ainda neste último ano, foram-lhe outorgados a Medalha do Pacificador Sergio Vieira de Mello, do Parlamento Mundial para a Segurança e a Paz, e o Colar do Mérito Judiciário, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.


Sua poesia já foi traduzida para o espanhol, alemão, francês, inglês, italiano, dinamarquês, russo e chinês.

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