“Versos não se escrevem para leitura de olhos mudos” [Mario Quintana]

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

O Poeta do Mês:
DECIO BETTENCOURT MATEUS

 

NEGRA DA TERRA


Negra de carapinha dura
Não estraga teus cabelos,
Me jura.
(Teta Landu*)

Minha negra brinca a gingar
Magia da kianda
Negra anda-que-anda
E ginga-que-ginga
Andar de negra é banga
Andar de negra é cântico do mar!

Minha negra ginga elegante
Nas curvas duma viola
Nas ondulações duma mbunda
Negra ginga e rola
E encanta gente
Ginga e rola a negra linda!

Ginga de negra é cântico do mundo
Não usa coisas de tissagem
Usa tranças de bailundo
A negra jovem
E ginga-que-ginga a dançar
Ginga nas ondas do mar!

Minha negra mulher cristalina
Não usa coisas de postiços
Usa carapinha
E tranças de linha
E tem magia de feitiços
A preta africana!

Minha negra beleza genuína
Ginga-que-ginga
Dança-que-dança a preta angolana
Minha negra mulher da terra
Mulher negra
Penteado à africana!

Minha negra mulher formosa, mulher cheia
Mbunda farta
Não conhece cabeleireira alheia
Usa carapinha de preta
E traz na voz a tradição negra
Traz na voz o pulsar da terra!

 

 ****

E TAMBÉM OS PEQUENOS…


E também os pequenos
virgens d’anos
e inocentes d’inocências
nas costas uma zunga d’andanças
e vivências
a deambular caminhos d’esperanças!

Também a garotada
a cavalgar avenidas
e cacos da vida
ruelas, uma zunga de vida fatigada
nas costas da mãe zungueira
a calcorrear vida vendedora!

E aspiram sol da dureza
a miudagem a brotar indigente
caminhada ambulante
Sol d’asperezas:
o meu futuro são árvores abandonadas
nos cantos da esquina da vida!

E fogem pendurados nos panos
em pernas zungueiras
lascas de zunga
a dialogar distância longa:
o meu futuro são gotas de poeiras
e lixo na inocência d’anos!

O meu futuro uma hipoteca
de fome faminta
a deambular praças barulhentas
e gente esfomeada
de ruas alagadas
o meu futuro, uma dor de fome seca!
 
 ****

FALAM INCOMPLETAS...



Falam incompletas
Tuas palavras incompletas de voz
A disparar veloz
A melodia do telemóvel:
“…Yá, mas não vai ser possível”,
Tua voz de certezas incertas!

Cantam incompletas e evasivas
Tuas gingas altivas
Nas estradas do meu mar
Falas mansas de luar
Melodia na voz do telemóvel:
“Talvez p’ra semana”. Doce nega afável!

Ondulam rios de brincadeira
Nas tuas margens
A desenharem-me nuvens
Depois teu andar chocalho
Um sorriso um brilho
Um doce ocultar desejo-ira!

Dizem-me esquivas tuas manias
Dias e depois dias de jejum e dias
A doerem-me as noites
Açoites no vazio
Do teu silêncio
Açoites em minhas incertezas inertes!

Cantam pássaros quando passas de esguelha
E teu sorriso num cora-brilha e brilha
Tua voz sussurro distante
Murmúrio ofegante
Coisas d’ondas do mar
Coisas de desejos no meu peito a latejar!
 
****

A DOR DA POESIA!


Corre os musseques distantes
Entra as kubatas
De lata
Respira o fumo da lenha
E traz o murmúrio das gentes
A batucar o cacimbo da manhã!

Escuta as gentes empobrecidas
E desentendidas em lamúrias
E gritarias
De fome
As gentes esfomeadas
E vivenciadas de vexame!

Senta-se nas tabernas barulhentas
E fedorentas
Vozes pastosas de bebedeiras
Sanzaleiras
Vozes embriagadas
A cambalearem as estradas!

Grita o lamento dos matos
O olhar cansado das distâncias
A lenha nos lombos
O cansaço aos tombos
Na dor dos dias
E umas mãos a sorrirem maus-tratos!

Traz a algazarra dos musseques atrasados
Peitos furiosos sem camisa
O ciúme
A porrada em casa
A fome
Na violência dos musseques abandonados!

Escreve a voz das gentes analfabetas
Nas ruelas das kubatas
As gentes sofridas da hipocrisia
Dum discurso polido
E armadilhado

E ao pôr-do-sol cantará seu mistério: poesia!
 
[kubata: casa pobre feita de lata, por exemplo.
musseque: bairros pobres
cacimbo: estação fria]
 

MINHA ANDORINHA



Minha andorinha
Bate asas e rasga céus
E voa a tardinha
A brincar os aléns
Das nuvens
Voa andorinha dos sonhos meus!

Minha andorinha
Navega tardes e céus
E destapa véus
De distâncias
Voa andorinha minha
Uma maré suculenta de dias!

Caminhará a face de Deus?
Ruma o infinito
Dos céus
E no meu peito
Uma nostalgia a voar
Uma nostalgia de luar!

Minha andorinha
Brinca desafio aos céus
Belisca a face de Deus
E leva minha mensagem
Selada numa nuvem
Leva andorinha minha!

Oh! Minha andorinha
Vai a desbaratar os céus
Da noitinha
E rasga eternidades
D’infinidades
Voa andorinha minha a face de Deus!


DECIO BETTENCOURT MATEUS



Naturalizado e residente em Luanda, nasceu em Menongue provincia do Kuando-Kubango, sul de Angola. Desde muito cedo me habituou-se a ouvir vozes silenciosas no seu interior. Desde muito cedo compreendeu que tinha de colocar estas vozes no papel! Membro da União dos Escritores Angolanos. Sócio correspondente n.1150 da Academia Brasileira de Poesia - Casa de Raul de Leoni.



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